Entre 1892 e 1894
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, V.II, 1994.
Publicado originalmente
VAE SOLI!
(1892, julho)
Um dia desta semana, farto de
vendavais, naufrágios, boatos, mentiras, polêmicas, farto de ver como se
descompõem os homens, acionistas e diretores, importadores e industriais,
farto de mim, de ti, de todos, de um tumulto sem vida, de um silêncio
sem quietação, peguei de uma página de anúncios, e disse comigo:
"Eia, passemos em revista as
procuras e ofertas, caixeiros desempregados, pianos, magnésias, sabonetes,
oficiais de barbeiro, casas para alugar, amas-de-leite, cobradores, coqueluche,
hipotecas, professores, tosses crônicas..."
E o meu espírito, estendendo e
juntando as mãos e os braços, como fazem os nadadores, que caem do alto,
mergulhou por uma coluna abaixo. Quando voltou à tona, trazia entre os dedos
esta pérola:
Uma
viúva interessante, distinta, de boa família e independente de meios, deseja encontrar por esposo um homem de meia idade, sério, instruído, e também com
meios de vida, que esteja como ela cansado de viver só; resposta por
carta ao escritório desta folha, com as iniciais M. R...., anunciando, a fim de
ser procurada essa carta.
Gentil viúva, eu não sou o homem que procuras, mas
desejava ver-te, ou, quando menos, possuir o teu retrato, porque tu não és
qualquer pessoa, tu vales alguma coisa mais que o comum das mulheres. Ai de
quem está só! dizem as sagradas letras; mas não
foi a religião que te inspirou esse anúncio. Nem motivo teológico, nem
metafísico. Positivo também não, porque o positivismo é infenso às segundas
núpcias. Que foi então, senão a triste, longa e aborrecida experiência? Não
queres amar; estás cansada de viver só.
E a cláusula de ser o esposo outro aborrecido, fato de
solidão, mostra que tu não queres enganar, nem sacrificar ninguém. Ficam desde
já excluídos os sonhadores, os que amem o mistério e procurem justamente esta
ocasião de comprar um bilhete na loteria da vida. Que não pedes um diálogo de
amor, é claro, desde que impões a cláusula da meia idade, zona em que as
paixões arrefecem, onde as flores vão perdendo a cor
purpúrea e o viço eterno. Não há de ser um náufrago, à espera de uma tábua de
salvação, pois que exiges que também possua. E há de ser instruído, para encher
com as luzes do espírito as longas noites do coração, e contar (sem as mãos
presas) a tomada de Constantinopla.
Viúva dos meus pecados, quem és tu que sabes tanto? O teu
anúncio lembra a carta de certo capitão da guarda de Nero. Rico, interessante,
aborrecido, como tu, escreveu um dia ao grave Sêneca, perguntando-lhe como se
havia de curar do tédio que sentia, e explicava-se por figura: "Não é a
tempestade que me aflige, é o enjôo do mar". Viúva minha, o que tu queres
realmente, não é um marido, é um remédio contra o enjôo. Vês que a travessia
ainda é longa, — porque a tua idade está entre trinta e dois e trinta e
oito anos, — o mar é
agitado, o navio joga muito; precisas de um preparado para matar esse mal cruel
e indefinível. Não te contentas com o remédio de Sêneca, que era justamente a
solidão, "a vida retirada, em que a alma acha todo o seu sossego". Tu
já provaste esse preparado; não te fez nada. Tentas outro; mas queres menos um companheiro
que uma companhia.
Pode ser que a esta hora já
tenhas achado o esposo nas condições definidas. Não estás ainda casada, porque
é preciso fazer correr os pregões, e tens alguns dias diante de ti, para
examinar bem o homem. Lembra-te de Xisto V, amiga minha; não vá ele sair, em
vez de um coração arrimado à bengala, um coração com pernas, e umas pernas com
músculos e sangue; não vás tu ouvir, em vez da tomada
de Constantinopla, a queda de Margarida nos braços de Fausto. Há desses
corações, nevados por cima, como estão agora as serras
do Itatiaia e de Itajubá, e contendo em si as lavas que o Etna está cuspindo
desde alguns dias.
Mas, se ele te sair o que queres, que grande prêmio de
loteria! Junto à amurada do navio, vendo a fúria do mar e dos ventos, tu
ouvirás muitas coisas sérias e graciosas a um tempo,
seguindo com os olhos a fúria dos ventos e o tumulto das ondas livre, do enjôo,
como pedia aquele capitão de Nero, e por diferente regímen do que lhe aconselhou o filósofo. E a tua conclusão será como a tua premissa;
em caso de tédio, antes um marido que nada.
SALTEADORES DA TESSÁLIA
(1893, novembro)
Tudo isto cansa, tudo isto exaure.
Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada
existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, é tudo a mesma
coisa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este
vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto
a chuva cai ou não cai, e o vento sopre ou não; mas sempre o mesmo vento e a
mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure.
Tal era a reflexão que eu fazia
comigo, quando me trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não fosse velho?
A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários são
decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira
semana dele, dia por dia até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista
bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão
o sentimento da caducidade da obra.
Repito, que me trariam os diários? As
mesmas notícias locais e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas
da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago,
as cebolas do Egito, os juízes de Berlim, a paz de Varsóvia, os Mistérios de
Paris, a Lua de Londres, o Carnaval de Veneza... Abri-os sem
curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os olhos caíssem pelas colunas
abaixo, ao peso do próprio fastio. Mas os diabos estacaram de repente, leram,
releram e mal puderam crer no que liam. Julgai por vós mesmos.
Antes de ir adiante, é preciso
saber a idéia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. Provavelmente,
é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus
impostos e leis. É um cidadão ordeiro, ora implacável e violento, ora tolerante
e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o
contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta.
Inimigo delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e
religião tirar a bolsa aos homens, e, se for preciso, a vida. Foge naturalmente
aos tribunais, e, por antecipação, aos agentes de polícia. A sua arma é uma
espingarda; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Uma espingarda,
um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu. O mais é
com ele.
Dadas estas noções elementares,
imaginai com que alvoroço li esta notícia de uma de nossas folhas: "Na
Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem
de prisão contra outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de
salteadores, que infesta a província de Tessália".
Dou-vos dez minutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a
notícia; e, se vos acomodais da monotonia da vida, podeis clamar contra
semelhante acumulação. Chamai bárbara à moderna
Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime.
Sim, essa mistura de discurso e
carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às duas horas da
tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada,
para tirar-lhe os restos do subsídio, não é comum, nem rara, é única. As
instituições parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao
contrário, quaisquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de
costumes, o regímen das câmaras difere pouco, e,
ainda que difira muito, não irá ao ponto de pôr na mesma curul Catão e Caco. Há alguma coisa nova debaixo do sol.
Durante meia hora fiquei como fora
de mim. A situação é, na verdade, aristofanesca. Só a
mão do grande cômico podia inventar e cumprir tão extraordinária facécia. A
folha que dá a notícia não conta nada da provável confusão de linguagem que há
de haver nos dois ofícios. Quando algum daqueles deputados tivesse de falar na
Câmara, em vez de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida. Vice-versa, agredindo um viajante, pedir-lhe-ia dois
minutos de atenção. E nada ficaria, em absoluto, fora do seu lugar; com dois
minutos de atenção se tira o relógio a um homem, e mais de um na Câmara
preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso.
Mas, por todos os deuses do Olimpo! não há gosto perfeito na
terra. No melhor da alegria, acudiu-me à lembrança o livro de Edmond About, onde me pareceu que havia alguma coisa semelhante à
notícia. Corri a ele; achei a cena dos maniotas, que
ameaçavam brandamente um dos amigos do autor, se lhes não desse uma pequena
quantia. O chefe do grupo era empregado subalterno da administração local. About chega, ameaça por sua vez os homens, e, para
assustá-los, cita o nome de um deputado para quem levava carta de recomendação.
"Fulano! exclamou o chefe da quadrilha, rindo; conheço muito, é dos
nossos."
Assim, pois, nem isto é novo! Já
existia há quarenta anos! A novidade está no mandado de prisão, se é a primeira
vez que ele se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dois ofícios
discretamente. Fiquei triste. Eis aí, tornamos à velha divisão de classes, que
a terra de Homero podia destruir pela forma audaz de Talis.
Aí volta a monotonia das funções separadas, isto é, uma restrição à liberdade
das profissões. A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o
salteador, na arte, é um caráter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o nome, pode ser que tivesse
ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas estou certo que proporia na
Câmara uma pensão à viúva da vítima. São duas operações diversas, e a
diversidade é o próprio espírito grego. Adeus, minha ilusão de um instante!
Tudo continua a ser velho; nihil sub sole novum.
Eu pediria o perdão de Talis, se pudesse ser ouvido. Condenem os demais, se
querem, mas deixem um, Talis ou outro qualquer, um
funcionário duplo, que tire ao parlamento grego o aspecto de uma instituição
aborrecida. Que a Hélade deite os ministérios abaixo,
se lhe apraz, mas não atire às águas do Eurotas um
elemento de aventura e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este
modernismo, que é outro turco, diferente do primeiro em não ser silencioso. Não
esqueça que Byron, um dos seus grandes amigos, deixou o parlamento britânico
para fugir à discussão da resposta à fala do trono. E repare que não há, entre
os seus poemas, nenhum que se chame O presidente do conselho, mas há um
que se chama O Corsário.
O SERMÃO DO DIABO
(1893, setembro)
Nem sempre respondo por papéis
velhos; mas aqui está um que parece autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo,
justamente um sermão da montanha, à maneira de S. Mateus. Não se apavorem as
almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que "a igreja do Diabo imita a
igreja de Deus". Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do
Diabo:
1º E vendo o Diabo a grande
multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter
sentado, vieram a ele os seus discípulos.
2º E ele, abrindo a boca, ensinou
dizendo as palavras seguintes.
3º Bem-aventurados aqueles que
embaçam, porque eles não serão embaçados.
4º Bem-aventurados os afoitos,
porque eles possuirão a terra.
5º Bem-aventurados os limpos das
algibeiras, porque eles andarão mais leves.
6º Bem-aventurados os que nascem
finos, porque eles morrerão grossos.
7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu
respeito.
8º Folgai e exultai, porque o
vosso galardão é copioso na terra.
9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa
se há de salgar?
10º Vós sois a luz do mundo. Não
se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a
vela.
11º Não julgueis que vim destruir
as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.
12º Não acrediteis em sociedades
arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se consertam, e se não for com
remendo da mesma cor, será com remendo de outra cor.
13º Ouvistes que foi dito aos
homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros;
melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o
próprio.
14º Também foi dito aos homens:
Não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais
castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a vosso irmão para ganhardes o
reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa.
15º Assim, se
estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio
desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu
irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar
consigo.
16º Igualmente ouvistes que foi
dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao
Senhor os teus juramentos.
17º Eu, porém, vos digo que não
jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura
de roer; mas jurai sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos
para crer antes nos que juram falso, do que nos que
não juram nada. Se disseres que o sol acabou, todos acenderão velas.
18º Não façais as vossas obras
diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia.
19º Quando, pois, quiserdes tapar
um buraco, entendei-vos com algum sujeito hábil, que faça treze de cinco e
cinco.
20º Não queirais guardar para vós
tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e donde os ladrões os
tiram e levam.
21° Mas remetei os vossos tesouros
para algum banco de Londres, onde nem a ferrugem, nem a traça os consomem, nem
os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo.
22º Não vos fieis uns nos outros.
Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de
comer o seu vizinho, e boa cara não quer dizer bom negócio.
23º Vendei gato por lebre, e
concessões ordinárias por excelentes, a fim de que a terra se não despovoe das
lebres, nem as más concessões pereçam nas vossas mãos.
24º Não queirais julgar para que
não sejais julgados; não examineis os papéis do próximo para que ele não
examine os vossos, e não resulte irem os dois para a cadeia, quando é melhor
não ir nenhum.
25º Não tenhais medo às
assembléias de acionistas, e afagai-as de preferência às simples comissões,
porque as comissões amam a vanglória e as assembléias as boas palavras.
26º As porcentagens são as
primeiras flores do capital; cortai-as logo, para que as outras flores brotem
mais viçosas e lindas.
27º Não deis conta das contas
passadas, porque passadas são as contas contadas e perpétuas as contas que se
não contam.
28º Deixai falar os acionistas
prognósticos; uma vez aliviados, assinam de boa vontade.
29º Podeis excepcionalmente amar a
um homem que vos arranjou um bom negócio; mas não até o ponto de o não deixar
com as cartas na mão, se jogardes juntos.
30° Todo aquele que ouve estas
minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou
sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do homem sem consideração,
que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...
Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio
Diabo, ou alguém por ele; mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles. Fiz-lhe uma cruz
com os dedos e ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas
doutrinas, nem pelos erros de cópia.
CANÇÃO DE PIRATAS
(1894, julho)
Telegrama da Bahia refere que o
Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens (dois mil homens) perfeitamente
armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas nome algum, que é sair da
poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem, dizem que fanático, levando
consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias
tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros
lugares os seus assaltos.
Jornais recentes afirmam também
que os célebres clavinoteiros de Belmonte têm fugido,
em turmas, para o Sul, atravessando a comarca de Porto-Seguro. Essa outra
horda, para empregar o termo do profano vulgo que odeio, não obedece ao mesmo
chefe. Tem outro ou mais de um, entre eles o que
responde ao nome de Cara de Graxa. Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são
criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados,
qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a
renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem
dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa
chilra e dura deste fim de século. Nos climas ásperos, a árvore que o inverno
despiu é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que aprendeu
não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte
é a árvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.
Sim, meus amigos. Os dois mil
homens do Conselheiro, que vão de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo sertão,
comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente,
moças cativas, chorosas e belas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e fecunda. Recordai
vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas:
En mer, les
hardis écumeurs!
Nous allions
de Fez à Catane...
Entrai pela Espanha, é ainda a terra da imaginação de
Hugo, esse homem de todas as pátrias; puxai pela memória, ouvireis Espronceda dizer outra canção de pirata, um que
desafia a ordem e a lei como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; aí Byron recita
os versos do Corsário no regaço da bela Guiccioli.
Tornai à nossa América, onde Gonçalves Dias também cantou o seu pirata. Tudo
pirata. O romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura do salteador
que estripa um homem e morre por uma dama.
Crede-me, esse Conselheiro que está em
Canudos com os seus dois mil homens, não é o que dizem telegramas e papéis
públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem
benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências,
tudo o que obriga, alinha a apruma. São homens fartos desta vida social e pacata,
os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos,
as mesmas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado,
com o seu livro do ponto, hora de entrada e de saída, e desconto por faltas. O
próprio amor é regulado por lei; os consórcios
celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de
Deus, tudo com etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de
convenção. Nem a morte escapa à regulamentação universal; o finado há de ter
velas e responsos, um caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura
numerada, como a casa em que viveu... Não, por Satanás! Os partidários do
Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta
da civilização e saíram à vida livre.
A vida livre, para evitar a morte igualmente livre,
precisa comer, e daí alguns possíveis assaltos. Assim também o amor livre. Eles
não irão às vilas pedir moças
Sa Hautesse aime les primeurs,
Nous vous ferons mahométane...
Maometana ou outra coisa, pois
nada sabemos da religião desses, nem dos clavinoteiros,
a verdade é que todas elas se afeiçoarão ao regímen,
se regímen se pode chamar a vida errática. Também há
estrelas erráticas, dirão elas, para se consolarem. Que outra coisa podemos supor de tamanho número de gente? Olhai que tudo
cresce, que os exércitos de hoje não são já os dos tempos românticos, nem as
armas, nem os legisladores, nem os contribuintes, nada. Quando tudo cresce, não
se há de exigir que os aventureiros de Canudos, Alagoinhas e Belmonte contem
ainda aquele exíguo número de piratas da cantiga:
Dans la galère capitane,
Nous étions quatre-vingts rameurs,
mas mil, dois mil, no mínimo. Do
mesmo modo, ó poetas, devemos compor versos extraordinários e rimas inauditas.
Fora com as cantigas de pouco fôlego. Vamos fazê-las de mil estrofes, com
estribilho de cinqüenta versos, e versos compridos, dois decassílabos atados
por um alexandrino e uma redondilha. Pélion sobre Ossa, versos de Adamastor, versos de Encélado.
Rimemos o Atlântico com o Pacífico, a Via-Láctea com
as areias do mar, ambições com malogros, empréstimos com calotes, tudo ao som
das polcas que temos visto compor, vender e dançar só no Rio de Janeiro. Ó
vertigem das vertigens!
GARNIER
(1893, outubro)
Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra
parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum — está escrito no alto da porta do
cemitério de S. João Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão
mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar;
o meu lugar é na Rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao
fundo, à esquerda: é ali que estão os meus livros, e minha correspondência, as
minhas notas, toda a minha escrituração.
Durante meio século, Garnier não fez outra coisa, senão estar ali, naquele mesmo
lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia
todos os dias de Santa Teresa para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se
recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por que não descansava algum
tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous
résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant
cinquante ans? Na
véspera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda planejou
descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à livraria.
Essa livraria é uma das últimas
casas da Rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes
das que se foram, porque não as conheceríeis, vós que sois mais rapazes que eu,
e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem, ao par de belas jóias, excelentes queijos. Uma das últimas figuras
desaparecidas foi o Bernardo, o perpétuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos
charutos do Duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, ou quase únicos. Há casas como a Laemmert e o Jornal do Comércio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se
fossem; a maior parte, porém, desfizeram-se com os donos.
Garnier é das figuras derradeiras. Não
aparecia muito; durante os 20 anos das nossas relações, conheci-o sempre no
mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a princípio era em outra casa, nº 69,
abaixo da Rua Nova. Não pude conhecê-lo na da Quitanda, onde se estabeleceu
primeiro. A carteira é que pode ser a mesma, como o banco alto onde ele
repousava, às vezes, de estar
Daquelas conversações tranqüilas,
algumas longas, estão mortos quase todos os
interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo
Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria
era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais
popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco,
romance e comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com José de
Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os
dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e
poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo.
Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear
um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrário.
Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de S. João
Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam
divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memórias
nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra;
todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das suas flores
mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos. Não citemos
nomes.
Nem mortos, nem vivos. Vivos há-os
ainda, e dos bons, que alguma coisa se lembrarão daquela casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas ou
escolares, não é mui difícil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor
de obras literárias, o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão
cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e
Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo
Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos anos, figuram ao pé de
outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da
publicidade e o caminho da reputação.
Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo,
desde a teologia até à novela, o livro clássico, a composição recente, a
ciência e a imaginação, a moral e a técnica. Já a achei feita;
mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a vê
agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, à espera da
justiça, do inventário e dos herdeiros, há de sentir que falta alguma coisa à
rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se
a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito.
Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho,
um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se
dele, não pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do castigo. Esta é
uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremus.
Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários
biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que neste país novo ocupou
a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos
de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua.
Perpétua!
A CENA DO CEMITÉRIO
(1894, junho)
Não mistureis alhos com bugalhos;
é o melhor conselho que posso dar às pessoas que lêem de noite na cama. A noite passada, por infringir essa regra, tive um pesadelo
horrível. Escutai; não perdereis os cinco minutos de audiência.
Foi o caso que, como não tinha
acabado de ler os jornais de manhã, fi-lo à noite.
Pouco já havia que ler, três notícias e a cotação da
praça. Notícias da manhã, lidas à noite, produzem sempre o efeito de modas
velhas, donde concluo que o melhor encanto das gazetas está na hora em que
aparecem. A cotação da praça, conquanto tivesse a mesma feição, não a li com
igual indiferença, em razão das recordações que trazia do ano terrível
(1890-91). Gastei mais tempo a lê-la e relê-la. Afinal pus os jornais de lado,
e, não sendo tarde, peguei de um livro, que acertou de ser Shakespeare. O drama
era Hamlet. A página, aberta ao acaso, era a cena do cemitério, ato V.
Não há que dizer ao livro nem à página; mas essa mistura de
poesia e cotação de praça, de gente morta e dinheiro vivo, não podia gerar nada bom; eram alhos com bugalhos.
Sucedeu o que era de esperar; tive
um pesadelo. A princípio, não pude dormir; voltava-me de um lado para outro,
vendo as figuras de Hamlet e de Horácio, os coveiros e as caveiras, ouvindo a
balada e a conversação. A muito custo, peguei no sono.
Antes não pegasse! Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias,
o gibão e os calções da mesma cor. Tinha a própria alma do príncipe de
Dinamarca. Até aí nada houve que me assustasse. Também não me aterrou ver, ao
pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José. Achei natural: ele não o
achou menos. Saímos de cara para o cemitério; atravessamos uma rua que nos
pareceu ser a Primeiro de Março e entramos em um espaço que era metade
cemitério, metade sala. Nos sonhos há confusões dessas, imaginações duplas ou
incompletas, mistura de coisas opostas, dilacerações, desdobramentos
inexplicáveis; mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Horácio, tudo aquilo devia
ser cemitério. Tanto era que ouvimos logo a um dos coveiros esta estrofe:
Era um título novinho,
Valia mais de oitocentos;
Agora que está velhinho
Não chega a valer duzentos.
Entramos e escutamos. Como na tragédia, deixamos que os
coveiros falassem entre si, enquanto faziam a cova de Ofélia. Mas os coveiros
eram ao mesmo tempo corretores, e tratavam de ossos e papéis. A um deles ouvia
bradar que tinha trinta ações da Companhia Promotora das Batatas Econômicas.
Respondeu-lhe outro que dava cinco mil-réis por elas. Achei pouco dinheiro e
disse isto mesmo a Horácio, que me respondeu, pela boca de José: "Meu
senhor, as batatas desta companhia foram prósperas enquanto os portadores dos
títulos não as foram plantar. A economia da nobre instituição consistia
justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez que o plantassem, era
indício certo da decadência e da morte".
Não entendi bem; mas os coveiros, fazendo saltar caveiras
do solo, iam dizendo graças e apregoando títulos. Falavam de bancos, do Banco
Único, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, e os respectivos títulos eram
vendidos ou não, segundo oferecessem por eles sete tostões ou duas patacas. Não
eram bem títulos nem bem caveiras; eram as duas coisas
juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos de olhos, dentes por
assinaturas. Demos mais alguns passos, até que eles nos viram. Não se
admiraram; foram indo com o trabalho de cavar e
vender. — Cem da
Companhia Balsâmica! — Três mil-réis. — São suas. — Vinte e cinco da Companhia
Salvadora! — Mil-réis! — Dois
mil-réis! — Dois mil e
cem! — E
duzentos! — E
quinhentos! — São suas.
Cheguei-me a um, ia a falar-lhe, quando fui interrompido
pelo próprio homem: "— Pronto Alívio! meus senhores! Dez do Banco Pronto Alívio!
Não dão nada, meus senhores? Pronto Alívio! senhores... Quanto
dão? Dois tostões? Oh! não! não! valem mais! Pronto Alívio! Pronto
Alívio!" O homem calou-se afinal, não sem ouvir de outro coveiro que, como
alívio, o banco não podia ter sido mais pronto. Faziam trocadilhos, como os
coveiros de Shakespeare. Um deles, ouvindo apregoar sete ações do Banco
Pontual, disse que tal banco foi realmente pontual até o dia em que passou do
ponto à reticência. Como espírito, não era grande coisa; daí a chuva de tíbias
que caiu em cima do autor. Foi uma cena lúgubre e alegre ao mesmo tempo. Os
coveiros riam, as caveiras riam, as árvores, torcendo-se ao
ventos da Dinamarca, pareciam torcer-se de riso, e as covas abertas
riam, à espera que fossem chorar sobre elas.
Surdiram muitas outras caveiras ou títulos. Da Companhia
Exploradora de Além-Túmulo apareceram cinqüenta e quatro, que se venderam a dez
réis. O fim desta companhia era comprar para cada acionista um lote de trinta
metros quadrados no Paraíso. Os primeiros títulos, em março de 1891, subiram a
conto de réis; mas se nada há seguro neste mundo
conhecido, pode havê-lo no incognoscível? Esta dúvida entrou no espírito do
caixa da companhia, que aproveitou a passagem de um paquete transatlântico,
para ir consultar um teólogo europeu, levando consigo tudo o que havia mais
cognoscível entre os valores. Foi um coveiro que me contou este antecedente da
companhia. Eis aqui, porém, surdiu uma voz do fundo da cova, que estavam
abrindo. Uma debenture! uma debenture!
Era já outra coisa. Era uma debenture.
Cheguei-me ao coveiro, e perguntei que era que estava dizendo. Repetiu o nome
do título. Uma debenture? — Uma debenture.
Deixe ver, amigo. E, pegando nela, como Hamlet, exclamei, cheio de melancolia:
— Alas, poor Yorick! Eu a conheci, Horácio. Era um título magnífico. Estes
buracos de olhos foram algarismos de brilhantes, safiras e opalas. Aqui, onde
foi nariz, havia um promontório de marfim velho lavrado; eram de nácar estas
faces, os dentes de ouro, as orelhas de granada e safira. Desta boca saíam as
mais sublimes promessas em estilo alevantado e nobre. Onde estão agora as belas
palavras de outro tempo? Prosa eloqüente e fecunda, onde param os longos períodos, as frases galantes, a arte com que fazias ver a gente
cavalos soberbos com ferraduras de prata e arreios de ouro? Onde os carros de
cristal, as almofadas de cetim? Dize-me cá, Horácio.
— Meu senhor...
— Crês que uma letra de Sócrates
esteja hoje no mesmo estado que este papel?
— Seguramente.
— Assim que, uma promessa de dívida
do nobre Sócrates não será hoje mais que uma debenture escangalhada?
— A mesma coisa.
— Até onde podemos descer, Horácio! Uma letra de Sócrates pode vir a ter os
mais tristes empregos deste mundo; limpar os sapatos, por exemplo. Talvez ainda
valha menos que esta debenture.
— Saberá Vossa Senhoria que eu não
dava nada por ela.
— Nada? Pobre Sócrates! Mas espera,
calemo-nos, aí vem um enterro.
Era o enterro da Ofélia. Aqui o pesadelo foi-se tornando
cada vez mais aflitivo. Vi os padres, o rei e a rainha, o séquito, o caixão. Tudo
se me fez turvo e confuso. Vi a rainha deitar flores sobre a defunta. Quando o
jovem Laertes saltou dentro da cova, saltei também; ali dentro atracamo-nos,
esbofeteamo-nos. Eu suava, eu matava, eu sangrava, eu gritava...
— Acorde, patrão! acorde!